Por Pedro Garcia Cueto
Um dos cineastas que mais deixou uma marca poética no cinema foi Truffaut, um diretor que imbuía as imagens de seus filmes de um amor declarado pela vida. Em O quarto para ver você (a sala verde) (1978), o cineasta francês homenageia um grande diretor recém-falecido, Roberto Rossellini, cuja luz está impregnada no olhar de Truffaut, aquele jeito de contemplar os personagens, de amá-los, de entendê-los.
A ação se passa nos anos vinte do século passado em uma pequena cidade do leste da França, ainda há vestígios de uma Primeira Guerra Mundial onde parecem retornar milhares de mortos que sofreram e foram derrotados na luta. Julien Davenne é um viúvo de quarenta anos que escreve obituários para uma revista provinciana chamada El Globo. Ele divide sua casa com sua empregada e um menino surdo que ficou órfão na guerra. O menino projeta imagens sórdidas da guerra através das placas de uma lanterna mágica. Podemos nos lembrar de ver a relação entre Julien e a criança que deu origem a O pequeno selvagem, outro filme de Truffaut, com um desejo educativo, que se concentra nos ensinamentos de Rousseau.
Julien conhece uma jovem em um leilão. Cécilia Mandel (interpretada por Nathalie Baye), que trabalha como secretária na sala de leilões e compartilha o gosto de Julien pelos mortos. Em uma sala verde em sua casa, ele guarda muitos objetos em homenagem a sua falecida esposa. Há um contratempo, um acidente, onde o quarto é destruído e Julien é forçado a escolher uma cripta no cemitério para homenagear a memória de sua esposa.
A relação entre Cecilia e Julien é de amor não realizado, porque o mundo dos mortos se interpõe entre eles, pois Cecilia homenageia um morto que Julien despreza, um velho amigo que o traiu, Paul Massigny. Nesta área de respeito pelos mortos, o filme cresce através dos diálogos, da contemplação dos objetos, da visão nocturna, do peso de espaços fechados que parecem inertes porque neles já não existe tempo. Ao final do filme, Julien vai morrer e em uma cena memorável, vemos Cecília consagrando uma vela em sua memória. A jovem não honrará mais apenas o inimigo de Julien, mas também ele, sucumbido à morte que tantas vezes chamou. Como se os personagens não fossem mais reais, podemos ver seres que estão a meio caminho entre a vida e a morte, pois o poder que a morte exerce sobre eles é mais poderoso que a própria vida.
A base deste filme claustrofóbico encontra-se nas histórias de Henry James (A besta da selva, Os amigos dos amigos e principalmente O altar dos mortos). A transposição das histórias para imagens é muito genial e estamos a assistir a um belo filme, muito romântico, onde respira aquele mundo do século XIX, como podemos recordar em muitos dos poetas românticos como nos poemas de Espronceda ou no pós-romantismo de Bécquer. Sobrevoa também o mundo de Edgar Allan Poe e seu universo de espíritos e seres mais próximos da morte do que da vida.
Na obra de Henry James, os personagens voltam das brumas, como podemos lembrar em Outra Volta do Parafuso, são seres fantasmagóricos que mais uma vez realizam o rito da vingança. Não se deve esquecer que o famoso filme Suspense de Jack Clayton é baseado nesse romance. O desejo de Julien Devanne (interpretado pelo próprio Truffaut com aquele mesmo ar poético que sempre dotou de seus papéis) é devolver a vida a esses seres, dar-lhes um espaço e assim possibilitar uma comunicação que a vida negou ao interromper a morte o que ele viveu entre esses seres, como seu amor por sua esposa.
Essa negação dos inevitáveis ninhos do filme, não deixa de ser um desejo romântico de permanência que podemos perceber, por exemplo, no início do filme, quando Julien assiste ao enterro da esposa de um amigo e este, quando o caixão do mulher vai ser engolida pela terra, ela se lança sobre ele, negando o futuro daquele que foi seu grande amor. Um padre intervém e fala da vontade de Deus, Julien intervém para recriminar tais palavras falsas, porque não há outra vida senão esta para ele.
Por isso, Julien constrói aquele santuário na sala verde, que mais tarde será devorado pelas chamas em um acidente fatal. O fogo é uma metáfora clara do que é a nossa vida no fim, nada na realidade, submetidos à força da morte todos acabaremos por desaparecer, queimados ou enterrados, mas não sendo realmente nada.
Se em Fahrenheit 451 Truffaut prestou homenagem à sua própria biblioteca pessoal, neste filme aparecem fotografias de Jean Cocteau ou Maurice Jaubert. O aceno de Truffaut para seres importantes de sua vida, que foram professores, está presente no filme, é uma forma de eternizá-los através de seu olhar nas fotografias, como se a vida se instalasse na morte, os seres que respiram na sala voltam ao que eram, ao peso que tinham na sua existência. Não podemos esquecer uma foto de Henry James, duplamente homenageado, porque ele usa suas histórias como base para o filme, mas também seu rosto para revivê-lo naquela sala verde. Oskar Werner, ator que havia trabalhado com o cineasta francês em Jules et Jim e no já citado Fahrenheit, aparece até como o bombeiro que deve queimar os livros para que ninguém tenha lembranças do mundo da cultura, em uma sociedade asséptica e automatizada . Julien conta a Cecilia que é um soldado alemão que morreu na Primeira Guerra Mundial. O físico de Werner, loiro e de olhos azuis, se encaixa nessa mentira que une magistralmente ficção e realidade.
A cenografia do filme é majestosa, assim como a música de Maurice Jaubert, que está presente nesta capela da memória. Este filme foi um fracasso, porque não se compreendeu o mundo poético de Truffaut, tão absorto na beleza e na passagem do tempo, também, como clímax, naquele universo de memórias que o filme representa, onde os mortos não estão mortos. e os vivos às vezes, por incompreensão e falta de sensibilidade, são. A indiscutível beleza das imagens faz deste um grande filme de um poeta cinematográfico que, infelizmente, faleceu cedo demais.